"Quais são as probabilidades de um raio me
fulminar? Quais são as probabilidades se eu for para junto de uma árvore e
gritar para que ele me queime? E se me cobrir de metal… ou se quiser muito?
Será que é por querer muito que as probabilidades aumentam? Se calhar não, se
calhar querer muito aumenta as probabilidades de se conseguir absolutamente
nada porque o menino que não procura senta-se sempre em cima do ovo da Páscoa e
o que procura, à chuva e ao frio, em vez do ovo vai chocar uma gripe.
E cada um tem o que merece, mas será que os que
merecem têm? E se têm… o que têm é aquilo que pediram? Se calhar não porque
quando pedimos nunca sabemos o que vamos ter e nunca conhecemos o que desejamos
pela simples razão de nunca o termos antes. Exemplo, eu tenho fome e depois
dores de barriga, eu estou sozinho e depois os que me fazem companhia
apontam-me uma arma à nuca, eu tenho frio mas depois fecham-me num forno que me
doura a pele e me queima os pêlos.
E o raio nunca cai no mesmo sítio, ou melhor,
até pode cair mas quais são as probabilidades? E a sorte toca a todos, ou até
pode não tocar a todos mas… quais são as probabilidades?
E pedimos o amor para termos alguém a instalar
câmaras ocultas para ver se andamos a comer a mulher da limpeza, e quem anda à
chuva molha-se porque estava seco.
E a sorte… acima de tudo imploramos pela sorte
de receber aquilo que pedimos para depois não gostarmos e exigirmos antes não
ter recebido… para depois querermos de novo e esperarmos que nada tivesse
acontecido porque estávamos melhor no início. Mas quando estamos no início
sentimo-nos sempre à espera do que nunca vem… e se vem não era bem aquilo
porque o génio não paga a luz e a lâmpada está sempre submersa na escuridão… e
quais são as probabilidades? Quais as hipóteses de felicidade? E o raio não
vem… rai’s parta a minha vida que é esperar o que quero e não preciso, e
preciso de esperar mas não quero, e gosto de ti porque tu não, e quando tu
gostares vou deixar eu de te querer.E quais são as probabilidades de nos
querermos os dois ao mesmo tempo? Quais são as probabilidades do nosso abraço
apertado não afrouxar? Quais são as probabilidades de nos amarmos à mesma hora,
nos mesmos dias, a cada segundo, como um raio que fulmina uma árvore
repetidamente e que, em vez de a destruir, a faz encher-se de frutos? E quais
são as probabilidades de não nos mexermos um milímetro para que o trovão nos dê
voz e a luz nos encha o espírito?
E quando os dias pequenos e escuros nos
trouxerem as pessoas rasteiras e sombrias que nos apontam defeitos como quem
come cerejas, desfazendo-nos os brincos que usávamos só por sedução, e quando a
tempestade nebulosa e sem faísca nos entorpecer de tédio e olharmos um para o
outro para vermos um monstro obeso e cariado que já nem reconhecemos… o que é
que vamos fazer aí? É possível continuar?
Quais são as probabilidades… quando o beijo me
souber a azedo e o teu corpo me parecer de gelo… e o teu sorriso for tão
magoado como o do anjo a quem não deram as asas?
E nessa altura… nessa altura vamos ter
vertigens e vai ser difícil, mesmo muito difícil, porque os beijos serão mais
curtos e as palavras ditas no meio do temporal serão secas… e vou esperar que
sejas outra e tu… que eu não seja. E vamos estar tão desencontrados como o
abraço que não queremos dar, como os lábios que resvalam para a bochecha, como
o sangue que o coração bombeia por engano para os olhos que estão vermelhos de
chorar. E aí tudo nos vai parecer o fim… e vamos querer continuar mas quais são
as probabilidades de nos amarmos à chuva e ao frio e ao vento?
Quais são as probabilidades? Diz-me… quais são
as probabilidades de um raio nos fulminar agora, aos dois, perpetuando-nos como
uma estátua que o não quis ser, como uma dor mais lancinante porque foi
procurada, como uma lei mais injusta porque foi feita depois do crime.
E o raio inunda-nos o corpo e os sentidos, e a
chuva passa, e a trovoada chega-nos num dia de Verão em que o céu sem nuvens se
enche de luz e nos ilumina a pele, e a boca, e os cabelos que voam com a
electricidade estática.
E todos diziam que não…
e nós também o dizíamos. Quais eram as probabilidades?
Quais eram as probabilidades do raio fulminar
os mesmos dois, duas vezes, no mesmo sítio… e nem quisemos… ou até quisemos no
início, mas depois não, depois não. Mas quando havíamos desistido e não o
queríamos mais chegou um trovão fora de tempo que nos deu a voz das palavras
doces… como as cerejas que nos roubaram e que não chegámos a comer, mas cujo
sabor vamos sentir num beijo que vai durar até ao fim da morte porque só a vida
não chegava."
luto lento - João Negreiros