Bernardo Soares
quinta-feira, 23 de dezembro de 2010
Bernardo Soares
quarta-feira, 22 de dezembro de 2010
As vozes que o chão me diz
“Na presença de um som prefiro-me calado porque um som pode significar muito
Muita coisa
Muito mesmo
Muito
Mesmo tudo
Ouve
Estás a ouvir?
Então ouve agora com atenção
Estás a ouvir com atenção?
Pois bem então imagina este som e faz de conta na semelhança de acreditar que é uma voz
Uma que está quase na esperança que a ouças
Atenta mais
Atenta melhor
Ouve nas entrelinhas de quem encosta o ouvido ao chão para ouvir ao longe o bater do coração da cavalgada da infantaria
És o índio
Tu és o índio que vai perceber antes os anseios dos depois que estão para falar
Ou dos antes que diziam mas que emudeceram porque não estavas com os tímpanos no cimento da pradaria
O teu papel é este
Passar a limpo o que dizem e falar disso aos que levam os tímpanos encostados ao ar porque acham que o peito da terra está sujo
O pó que se levanta agacha-te
Faz-te deitar aproximando de ti o planeta que nesse momento faz o único amigo
Encostas o que ouves ao que te dizem
Deixas que as lamúrias te usem primeiro os circuitos da orelha para depois os perceberes pelo julgamento do ouvido
E entendes tudo como quem escuta sem acenar a cabeça por estar colada a um chão quente em que te afundas
O cimento seco engole-te como o fresco e nadas pelo manto até ao centro
E no centro encontras todas as vontades que estão por cumprir
Ouves as vontades
Apontas num caderno à prova de chão e voltas à tona mais dura
Quando emerges contas aos milhões o que é que o planeta e todas as vozes que foram e que vão ser te disseram
Ninguém te dá ouvidos mas tu não fazes caso
Pegas no caderno à prova de chão e passas tudo a limpo para um caderno à prova de gente
E depois fotocopias o caderno à prova de gente e dás a todos os homens e mulheres
E todos os homens e mulheres tentam destruir o caderno
Mas não conseguem porque o caderno é á prova de gente passa a prova
E então todos passam a viver com o caderno colado na bolsa a tira a colo que levam quando estão nus
E as vozes que ouviste debaixo da terra estão agora debaixo da pele de todos
E agora podemos encostar-te ao peito uns dos outros para ouvir o que todos querem
E todos querem o mesmo
A mesma coisa
O que todos querem é isto
Então, como te correu o dia?
Tens frio?
Queres um beijinho?
Estás zangado?
Não estejas
Amanhã vai ser melhor
Acho que estás com febre
Queres que te faça um chá ou que vá à farmácia?
Fica-te bem o casaco, compraste onde?
Ainda bem que vieste
Estava mesmo a precisar de falar com alguém e só podias ser tu?
Queres ir lá a casa passar uns dias nas férias? Podíamos pescar
Podes ficar com ela não me faz falta
Estás com medo de quê? Porquê? Não tenhas dá um abraço pronto já passou
Pronto já passou
Perceberam perceberam?
Agora já não é um exemplo das coisas que se ouvem agora estou mesmo a falar
Perceberam?
É isto que se ouve
É isto que se quer
O que se quer
O que todos nós queremos é um bocadinho de atenção uma palavra
Ou duas
Ou três
Ou quatro
Ou sempre
Ou todas
Ou aquela que queremos ouvir
Ou a que precisamos de ouvir
O que nós queremos ouvir é que esteja alguém a ouvir
E quando não houver remédio
Quando a dor é maior que a vida e não há nada a fazer o que todos nós queremos é
Pronto já passou
Pronto já passou
Pronto já passou”
João Negreiros, pela última vez. Amei o livro “a verdade dói e pode estar errada” e foi por tantos dos textos dele me tocarem que os pôs aqui. Hei-de ir à procura de outros livros deste autor…
Indignação
Tenho presente na minha memória alguns conceitos que a bíblia defende, do tipo: Quem faz o mal vai para o inferno, quem faz o bem vai para o paraíso. Oh como era bom que isto fosse mesmo assim.
Pressinto que há muita gente neste mundo que não merecia morrer tão cedo, aliás de tão puramente humanas não deviam morrer de todo. Havendo outras que vivem demasiados anos só estando cá a chatear e a destruir o que de bom existe.
Não acredito nem no paraíso nem no inferno e por isso isto só me leva à indignação.
Qual é o prémio para aqueles que passam toda a sua vida a fazer o bem e a espalhar esperança e felicidade por onde passam?!
Eles não quereriam um prémio, este tipo de pessoas são superiores a isso, dão sem querer nada em troca.
Só fico indignada quando vejo injustiças. E o pior é que toda a gente sabe que o são mas ninguém fala delas. Toda a gente sabe que os bons raramente ganham algo por serem bons, enquanto os que procuram sucesso e poder são os que mais ganham prémios neste mundo.
Sei que há muitas pessoas a lutar contra o sistema e a favor da justiça, da sinceridade, da honestidade, da felicidade e da simplicidade. Muita gente mesmo que é abafada e posta de lado, que actua na sombra e que pouco ganha com a luta contínua.
E é a essas pessoas que dedico este post e agradeço por existirem e bato palmas em silêncio com vontade de um dia arranjar forças para ser como elas.
Nem que tenha que morrer mais cedo, (que é o que parece acontecer a muito boas pessoas) pelo menos morreria sabendo que tinha dado o melhor de mim.
Penso que não há maneira melhor de se morrer e espero que todas aquelas óptimas pessoas que morrem de cancro, ou de outra coisa qualquer, tenham isso em mente, que saibam que deixaram cá admiradores e que inspiraram muita gente só por existirem.
Digo isto como se estas pessoas, já mortas, pudessem ler estas palavras, como se pudessem sentir a minha energia. Não podem, e é essa uma das razões porque continuo indignada...
sábado, 18 de dezembro de 2010
O amoral da história
“O suor do lavrador faz brotar semente
A semente do lavrador faz brotar suor
Na goma da camisa está a importância da cerimónia
Na graça da criança está a desculpa para o adulto
A raiva acumulada dá o álibi ao pretexto
Perder a razão é comum em momentos de crise
Saber estar é circunstancial
Viver bem despoleta invejas
Voltemos atrás vivamos mal ou finjamos viver mal
Estar fora da realidade é a solução para quando a realidade não serve
O que nos serve de lição pode ficar curto nas mangas a outro
Um companheiro deve ser um amigo ou pelo menos
Não ser um inimigo
A verdade é a nossa
Ao longo da vida existem momentos em que escolhemos e outros que escolhem para nós
Criar é um privilégio
Criar é um dever
Criar é uma obrigação
Criar é
Criar pode ser
Criar ás vezes não é uma característica
Dar mérito a quem não o tem é perigoso
Dar mérito a quem o tem é difícil
Saber o nosso lugar é uma fonte de consumições
Não ter lugar pode ser a liberdade
Não ter onde ficar é desconfortável
Viver na escuridão faz mal aos olhos
Olhar para o sol directamente também
Roubar é errado
Roubar está errado
A gravidade de um roubo depende do que roubamos
De a quem roubamos
De quando roubamos
De como roubamos
De porque roubamos
De se hesitamos antes e se dormimos bem depois
Da falta que vai fazer a quem rouba
A circunstância de passar a fazer parte do conjunto de pessoas que já roubaram poderá ser também factor de adversidade ou não
A inteligência não anda de mãos dadas com o sucesso para não cair
Todos temos um objectivo
Uns sabem-nos
Outros não
Há gente que descobre quando já é tarde demais
Há gente que sabe que já é tarde demais quando descobre
Há gente que sabe mas que não quer descobrir
E há gente que descobre mas que não quer saber
Levar um dia de cada vez pode criar-nos dificuldades em fazer planos para o fim-de-semana
Estar sempre de pé atrás pode obrigar-nos a coxear
Se formos cruéis para os nosso semelhantes os nossos semelhantes serão iguais
Se tivermos vergonha das nossas origens vamos ter menos anos de vida
A comunicação é muito importante
Falar é importante
Falar é mais importante do que falar alto
Falar é mais importante do que falar baixo
Tocar é muito mais importante do que falar
Correr sem sentido ás vezes é tão útil como saber para onde se corre sempre
Começar bem um projecto ou viagem é melhor que um mau começo mas quase tudo está acometido de reversibilidade
E quase nada está acometido de irreversibilidade
Estar atento ao que se passa é muito útil mas pode dar-nos demasiada consciência da nossa impotência
Estar apenas atento faz-nos
Amorfos
Apolíticos
Amorais
Amáveis
O estado de atenção deverá ser alimentado por uma constante e genuína vontade de intervir
Essa vontade de intervir deverá ser secundada pela intervenção em si
Quem quiser viver mais tempo deve evitar confusões
Quem quiser viver deve meter-se nelas
Fazer o que nos mandam é mau
Fazer o que nos pedem pode ser bom
Quem só manda é mau
Quem só pede quer ser mas não consegue
Os desafios servem para falhar
Os desafios servem para conseguir
A coragem mede-se com uma régua imaginária que só existe quando o coração bate forte
A boca fica seca e sentimos o desmaio eminente
Os heróis são homens
As guerras servem para vender armas a santos
A simplicidade é difícil de atingir só porque ninguém é simples
Ninguém quer ser simples
As crianças fazem de conta que não sabem para que os pais se sintam melhor
Para que os pais sintam melhor
Para que os pais se sintam melhores
Os significados são exclusivos de quem os compreende
As relações entre pessoas são a causa principal de grande parte das coisas boas
As relações entre pessoas são a causa principal de grande parte das coisas más
O amor não é uma intervenção
Se o amor fosse uma intervenção funcionava
As histórias não deveriam ter moral
As histórias deveriam ter mensagem
Esta história não é uma história
O fim obriga-nos sempre a parar”
O meu querido João Negreiros
^^