quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

As vozes que o chão me diz

“Na presença de um som prefiro-me calado porque um som pode significar muito

Muita coisa

Muito mesmo

Muito

Mesmo tudo

Ouve

Estás a ouvir?

Então ouve agora com atenção

Estás a ouvir com atenção?

Pois bem então imagina este som e faz de conta na semelhança de acreditar que é uma voz

Uma que está quase na esperança que a ouças

Atenta mais

Atenta melhor

Ouve nas entrelinhas de quem encosta o ouvido ao chão para ouvir ao longe o bater do coração da cavalgada da infantaria

És o índio

Tu és o índio que vai perceber antes os anseios dos depois que estão para falar

Ou dos antes que diziam mas que emudeceram porque não estavas com os tímpanos no cimento da pradaria

O teu papel é este

Passar a limpo o que dizem e falar disso aos que levam os tímpanos encostados ao ar porque acham que o peito da terra está sujo

O pó que se levanta agacha-te

Faz-te deitar aproximando de ti o planeta que nesse momento faz o único amigo

Encostas o que ouves ao que te dizem

Deixas que as lamúrias te usem primeiro os circuitos da orelha para depois os perceberes pelo julgamento do ouvido

E entendes tudo como quem escuta sem acenar a cabeça por estar colada a um chão quente em que te afundas

O cimento seco engole-te como o fresco e nadas pelo manto até ao centro

E no centro encontras todas as vontades que estão por cumprir

Ouves as vontades

Apontas num caderno à prova de chão e voltas à tona mais dura

Quando emerges contas aos milhões o que é que o planeta e todas as vozes que foram e que vão ser te disseram

Ninguém te dá ouvidos mas tu não fazes caso

Pegas no caderno à prova de chão e passas tudo a limpo para um caderno à prova de gente

E depois fotocopias o caderno à prova de gente e dás a todos os homens e mulheres

E todos os homens e mulheres tentam destruir o caderno

Mas não conseguem porque o caderno é á prova de gente passa a prova

E então todos passam a viver com o caderno colado na bolsa a tira a colo que levam quando estão nus

E as vozes que ouviste debaixo da terra estão agora debaixo da pele de todos

E agora podemos encostar-te ao peito uns dos outros para ouvir o que todos querem

E todos querem o mesmo

A mesma coisa

O que todos querem é isto

Então, como te correu o dia?

Tens frio?

Queres um beijinho?

Estás zangado?

Não estejas

Amanhã vai ser melhor

Acho que estás com febre

Queres que te faça um chá ou que vá à farmácia?

Fica-te bem o casaco, compraste onde?

Ainda bem que vieste

Estava mesmo a precisar de falar com alguém e só podias ser tu?

Queres ir lá a casa passar uns dias nas férias? Podíamos pescar

Podes ficar com ela não me faz falta

Estás com medo de quê? Porquê? Não tenhas dá um abraço pronto já passou

Pronto já passou

Perceberam perceberam?

Agora já não é um exemplo das coisas que se ouvem agora estou mesmo a falar

Perceberam?

É isto que se ouve

É isto que se quer

O que se quer

O que todos nós queremos é um bocadinho de atenção uma palavra

Ou duas

Ou três

Ou quatro

Ou sempre

Ou todas

Ou aquela que queremos ouvir

Ou a que precisamos de ouvir

O que nós queremos ouvir é que esteja alguém a ouvir

E quando não houver remédio

Quando a dor é maior que a vida e não há nada a fazer o que todos nós queremos é

Pronto já passou

Pronto já passou

Pronto já passou”

João Negreiros, pela última vez. Amei o livro “a verdade dói e pode estar errada” e foi por tantos dos textos dele me tocarem que os pôs aqui. Hei-de ir à procura de outros livros deste autor…

Sem comentários:

Enviar um comentário