“Na presença de um som prefiro-me calado porque um som pode significar muito
Muita coisa
Muito mesmo
Muito
Mesmo tudo
Ouve
Estás a ouvir?
Então ouve agora com atenção
Estás a ouvir com atenção?
Pois bem então imagina este som e faz de conta na semelhança de acreditar que é uma voz
Uma que está quase na esperança que a ouças
Atenta mais
Atenta melhor
Ouve nas entrelinhas de quem encosta o ouvido ao chão para ouvir ao longe o bater do coração da cavalgada da infantaria
És o índio
Tu és o índio que vai perceber antes os anseios dos depois que estão para falar
Ou dos antes que diziam mas que emudeceram porque não estavas com os tímpanos no cimento da pradaria
O teu papel é este
Passar a limpo o que dizem e falar disso aos que levam os tímpanos encostados ao ar porque acham que o peito da terra está sujo
O pó que se levanta agacha-te
Faz-te deitar aproximando de ti o planeta que nesse momento faz o único amigo
Encostas o que ouves ao que te dizem
Deixas que as lamúrias te usem primeiro os circuitos da orelha para depois os perceberes pelo julgamento do ouvido
E entendes tudo como quem escuta sem acenar a cabeça por estar colada a um chão quente em que te afundas
O cimento seco engole-te como o fresco e nadas pelo manto até ao centro
E no centro encontras todas as vontades que estão por cumprir
Ouves as vontades
Apontas num caderno à prova de chão e voltas à tona mais dura
Quando emerges contas aos milhões o que é que o planeta e todas as vozes que foram e que vão ser te disseram
Ninguém te dá ouvidos mas tu não fazes caso
Pegas no caderno à prova de chão e passas tudo a limpo para um caderno à prova de gente
E depois fotocopias o caderno à prova de gente e dás a todos os homens e mulheres
E todos os homens e mulheres tentam destruir o caderno
Mas não conseguem porque o caderno é á prova de gente passa a prova
E então todos passam a viver com o caderno colado na bolsa a tira a colo que levam quando estão nus
E as vozes que ouviste debaixo da terra estão agora debaixo da pele de todos
E agora podemos encostar-te ao peito uns dos outros para ouvir o que todos querem
E todos querem o mesmo
A mesma coisa
O que todos querem é isto
Então, como te correu o dia?
Tens frio?
Queres um beijinho?
Estás zangado?
Não estejas
Amanhã vai ser melhor
Acho que estás com febre
Queres que te faça um chá ou que vá à farmácia?
Fica-te bem o casaco, compraste onde?
Ainda bem que vieste
Estava mesmo a precisar de falar com alguém e só podias ser tu?
Queres ir lá a casa passar uns dias nas férias? Podíamos pescar
Podes ficar com ela não me faz falta
Estás com medo de quê? Porquê? Não tenhas dá um abraço pronto já passou
Pronto já passou
Perceberam perceberam?
Agora já não é um exemplo das coisas que se ouvem agora estou mesmo a falar
Perceberam?
É isto que se ouve
É isto que se quer
O que se quer
O que todos nós queremos é um bocadinho de atenção uma palavra
Ou duas
Ou três
Ou quatro
Ou sempre
Ou todas
Ou aquela que queremos ouvir
Ou a que precisamos de ouvir
O que nós queremos ouvir é que esteja alguém a ouvir
E quando não houver remédio
Quando a dor é maior que a vida e não há nada a fazer o que todos nós queremos é
Pronto já passou
Pronto já passou
Pronto já passou”
João Negreiros, pela última vez. Amei o livro “a verdade dói e pode estar errada” e foi por tantos dos textos dele me tocarem que os pôs aqui. Hei-de ir à procura de outros livros deste autor…
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