"Ontem disseram-me que eu era bonito e eu
acreditei porque dava muito trabalho dizer o contrário. Além de que, ao dizer o
contrário, poderia obrigar quem o afirmou a realçar-me a fealdade. Então
resolvi simplificar as coisas e aceitar o elogio como se de uma verdade
absoluta se tratasse. E depois fiquei bonito com aquela plástica na
auto-estima… e fiquei tão bonito, tão belo e benemérito que decidi retribuir… e
disse a quem me disse que quem me disse também o era… e quem me disse ficou tão
contente que me fez desconfiar.
Será que quem me disse disse-me o que me disse
para eu lhe dizer a seguir? E fiquei logo mais feio, entortou-se-me o nariz,
tornou-se mais amarelo o branco dos olhos… e até um dente que tenho nos fundos
amareleceu com a ausência de siso e ficou podre… e eu também.
Então encostei quem me disse contra a parede,
literalmente, mas como era um muro reformulo a expressão: e encostei-o contra o
muro, literalmente. E quem me disse disse que sim, que era a melhor maneira, que
não teríamos que ir a uma clínica.
E foi então que percebi. E passámos três meses
a dizermos da beleza um do outro e, no fim, estávamos tão belos, tão cheios,
tão redondos com aquela silicone emocional e com a cabeça tão leve que
começámos a voar. E demos quatro ou cinco voltas ao mundo sem outros motivos de
conversa a não ser de dizermos um ao outro e outro ao um que éramos mesmo muito
bonitos.
Mas as pessoas lá de baixo, as pessoas
pequeninas, porque eram pessoas de ver ao longe e porque eram pequeninas
começaram a lembrar-nos das imperfeições com megafones pendurados nos
arranha-céus, como quem lhes lava os vidros mesmo quando não se distinguem da
transparência do ar.
E esses lavadores de vidros anões fizeram
pairar o nosso voo, e em seguida parar o nosso voo, e agora estávamos feios e a
cair de encontro ao chão, e íamos mesmo para morrer mas, de repente, um de nós
lembra-se e diz ao outro:
- Tu tens um bom coração.
E o que ouviu não entendeu como uma análise
clínica, mas como uma constatação da bondade de quem voa ao nosso lado. E o de
bom coração respondeu:
- Tu tens bom aspecto.
Mas não chegou porque o aspecto nunca chega, às
vezes pode parecer que chega mas nunca chega.
E o do bom coração voou de novo e deu mais
catorze voltas ao mundo antes de morrer de velho. E o do bom aspecto morreu
mesmo ali, quando lhe disseram que o tinha, parou-lhe o coração com o susto
porque não era bom."
luto lento - João Negreiros
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